TEXTO II - O que é loucura?
O que é loucura?
A própria palavra loucura é de difícil conceituação.
A própria palavra loucura é de difícil conceituação.
Loucura e distúrbio mental, hoje em dia, não são sinônimos e
precisam ser entendidos como coisas diferentes.
O que é loucura? Esta frase poderia ser exemplificada pelo julgamento de
Sócrates, o famoso filósofo, pois ele preferiu ser encarado como louco e criminoso a trair as suas
ideias. Um contra exemplo seria o julgamento de Galileu que para se salvar da
fogueira negou as suas teorias, tomando-as como loucuras sem valor.
A sociedade impõe regras de convivências e padrões de
condutas, que são seguidos por uma grande maioria, aqueles que se negam a
seguir as regras padrões sociais e transpõem as marcas do socialmente
aceito, são interpretados como loucos. Os desviantes da regras ditas como "normais" são vistos
como indivíduos sem condição de viver em sociedade, discriminados, são internados em
manicômios ou presídios.
O que nos diferencia dos loucos e dos criminosos é
apenas a percepção dos limites, pois capacidades e desejos “insanos” e
“criminosos” são uma constante na vida de boa parte das pessoas. Observe com senso crítico o comportamento geral das pessoas a partir das notícias de jornais.
Estado natural
Popularmente há uma tendência em se julgar a sanidade da
pessoa de acordo com seu comportamento ou com sua adequação às "conveniências" socioculturais como, por exemplo, a obediência aos familiares, o sucesso no
sistema de produção capitalista ou a postura sexual burguesa uniformizante que reduz a sexualidade, algo tão variável, tão complexo e abstrato à um único modelo alienante. A natureza é muito mais variável e inesperada do que pode supor nossos modelos enrijecidos e milenares.
Loucura e distúrbio mental, hoje em dia, não são sinônimos e precisam ser entendidos como coisas diferentes.
O psiquiatra e psicoterapeuta Paulo Urban explica que nem
sempre a loucura pode ser associada a uma doença. Às vezes, ela é só um
atributo da psique. “A loucura é associada ao transe, ao comportamento
desviante. Isso pode se manifestar como genialidade ou como uma negação de
normas que faz o louco ser, às vezes, até melhor adaptado do que uma pessoa
dita ‘normal’. Já as doenças mentais são um quadro grave e pedem tratamento. A
loucura, em muitos sentidos, pode ser um estado natural positivo”, diz o
médico.
Na Antiguidade
Na Antiguidade, a loucura era
considerada uma manifestação divina. A epilepsia era conhecida como “a doença
sagrada” e significava maus presságios. Se uma pessoa sofresse um ataque
epiléptico durante uma palestra, por exemplo, o evento era interpretado como uma
intervenção dos deuses. Era um sinal de que não se deveria acreditar no que
dizia o orador.
Na Idade Média
Na Idade Média, no entanto, algumas cidades entregavam os
loucos para os mercadores. Havia barcos que os levavam de uma cidade para outra, onde
vagavam perdidos . Era comum ver na Europa embarcações de loucos atracarem em seus
portos. Muitos outros, porém, acabavam acorrentados, demonizados, exorcizados ou queimados.
Uma das razões para isso é que a mentalidade na Idade Média associava a loucura à possessão diabólica. E embora essa forma de pensar tenha
raízes na própria formação doutrinária do cristianismo, o raciocínio acabou
funcionando como uma desculpa religiosa para a repressão às heresias ou um
recurso para impor a ortodoxia teológica e moral da época.
Assim como a ideia da loucura mudou com as épocas, existem
também variações culturais.
O que nós caracterizamos como loucura pode não ser
para um outro grupo. A noção de loucura é diversificada e relativa, uma vez que
cada grupo, cada cultura, cada época tem uma linguagem particular para defini-la, e essas diversas
linguagens implicam também práticas diversas. Enquanto em algumas regiões o
louco participa do convívio familiar, dependendo do nível de evolução e cultura, em outras o paciente é isolado, discriminado, agredido, tratado como bicho. Há
aqueles que, ao depararem com esses problemas, buscam soluções na religião.
Outros procuram a intervenção médica ou psicológica.
À mercê da moral
Essas diferentes posturas em relação à loucura mostram que,
ao longo da história, o juízo de valor e "modelo de comportamento" de cada época e lugar foi o que serviu de parâmetro para medir o que é, ou não, normalidade.
"Seja movido pela cultura ou por interesses mercadológicos – que é
o que faz, hoje, a indústria farmacêutica ao criar medicamentos para doenças
que nem existem -, um discurso padronizante sempre vence. É a ação do dominante sobre o
dominado. A classificação e marginalização de algumas posturas como doenças
vem, muitas vezes, do preconceito contra o que é ainda desconhecido”, afirma o psiquiatra
Paulo Urban.
Loucura e distúrbio mental, hoje em dia, não são sinônimos e precisam ser entendidos como coisas diferentes.
Mais recentemente, as pesquisas começaram a apontar para
causas bioquímicas das doenças mentais. A relação observada entre doenças
orgânicas e mentais levantou a lebre para a existência de razões bioquímicas
para distúrbios psiquiátricos, o que despertou um grande interesse pelas bases
neuronais do comportamento humano. Graças a isso, as descobertas avançaram.
Hoje, sabe-se o papel dos neurotransmissores e entende-se sua importância nas
alterações de humor. Mas o Enigma persiste!
A neurociência ainda não é capaz de dar respostas
completas sobre a causa de todos os transtornos. Há outras doenças cujas causas
orgânicas permanecem obscurecidas em alguns pontos. “Pacientes com psicose, por
exemplo, não apresentam nenhuma alteração biológica. Anatomicamente, seu cérebro
também é perfeitamente saudável”, diz Urban. “A neurociência é avançada tecnicamente,
mas não é suficiente. Por isso, não pode ser considerada o único discurso da
verdade.”
Só somos sábios para o ontem!
Nos indivíduos, a loucura é algo raro - mas nos grupos, nos partidos, nos povos, nas épocas, é regra.
Friedrich Nietzsche
Eu consigo calcular o movimento dos corpos celestiais, mas não a loucura das pessoas.
Isaac Newton
A loucura é o sonho de uma única pessoa. A razão, é sem dúvida, a loucura de todos.
André Suarés
Texto III - GRAVURAS E LEGENDAS
Conheça a macabra história do prédio mineiro onde funcionou o maior hospício do Brasil. Um acontecimento histórico que marcou uma época e inspirou jornalistas, escritores, artistas e cineastas.
Gravura A
Um dos capítulos mais obscuros na história da medicina no Brasil aconteceu no Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais, maior hospício que o país já teve. Durante décadas (entre 1930 e 1980), mais de 60 mil pessoas foram torturadas, violentadas e mortas no local.
Gravura B
De acordo com uma antiga funcionária, Francisca, ela presenciou muitas sessões de tortura e até a morte de um paciente após ele receber um choque elétrico. O sonho da auxiliar de cozinha era ser enfermeira, mas o testemunho de tanta crueldade fez com que ela desistisse da carreira.
Gravura C
Um detalhe curioso é que a grande maioria dos internos sequer tinha diagnóstico de doença mental, tratava-se apenas de seres humanos que não se encaixavam nos modelos e padrões sociais da época, nem todos possuíam laudo médico que atestasse loucura de fato, muitos eram, na verdade, epiléticos, mendigos, negros, alcoólatras, homossexuais, garotas que engravidavam antes do casamento e que a família, por vergonha, enviava para o Hospital Colônia de Barbacena. De certa forma, eram pessoas que "incomodavam" a sociedade puritana.
Gravura D
Gravura E
Luiz Alfredo – Repórter fotográfico da Revista O Cruzeiro que na época usou sua fotografia para denunciar os horrores do manicômio.
Gravura F
O evento conhecido como Holocausto Brasileiro, diz respeito às atrocidades cometidas por um hospital psiquiátrico (que ficou conhecido como “Colônia”) responsável pela morte de mais de 60 mil pessoas, portadoras ou não de deficiência mental.
Gravura G
Gravura H
Gravura I
Durante décadas, milhares de pacientes foram internados à força, sem diagnóstico de doença mental, num enorme hospício na cidade de Barbacena, em Minas Gerais. Ali foram torturados, violentados e mortos sem que ninguém se importasse com seu destino. Eram simplesmente epilépticos, meninas grávidas pelos patrões, mulheres confinadas pelos maridos, moças que haviam perdido a virgindade antes do casamento, homossexuais, filhos mal comportados, prostitutas, alcoólatras, enfim, quaisquer pessoas que não se enquadravam nas normas de "boa conduta" social da época.
Gravura J
Gravura K
Livro Holocausto brasileiro
Autora: Daniela Arbex
Gênero: Reportagem
Selo: GeraçãoUM PUNGENTE RETRATO DE ABANDONO E HORROR
Neste livro-reportagem, fundamental, a premiada jornalista Daniela Arbex resgata do esquecimento um dos capítulos mais macabros da nossa história: a barbárie e a desumanidade praticadas, durante a maior parte do século XX, no maior hospício do Brasil, conhecido por Colônia, situado na cidade mineira de Barbacena. Ao fazê-lo, a autora traz à luz um genocídio cometido, sistematicamente, pelo Estado brasileiro, com a conivência de médicos, funcionários e também da população, pois nenhuma violação dos direitos humanos mais básicos se sustenta por tanto tempo sem a omissão da sociedade.
Gravura L
O objetivo do livro é fazer com que os brasileiros fiquem cientes do que aconteceu na época. Sem nenhuma forma de censura, mostra exatamente a classificação de “indesejado social”, estigma criado pelos governantes e pela população.
Gravura M
Ninguém ouvia seus gritos. Jornalistas famosos, nos anos 60 e 70, fizeram reportagens denunciando os maus tratos. Nenhum deles — como faz agora Daniela Arbex — conseguiu contar a história completa. O que se praticou no Hospício de Barbacena foium genocídio, com 60 mil mortes. Um holocausto praticado pelo Estado, com a conivência de médicos, padres, familiares, funcionários e da população.
Gravura N
Gravura O
Gravura P
Gravura Q
Quando chegavam ao hospício, suas cabeças eram raspadas, suas roupas arrancadas e seus nomes descartados pelos funcionários, que os rebatizavam. Daniela Arbex devolve nome, história e identidade aos pacientes, verdadeiros sobreviventes de um holocausto, como Maria de Jesus, internada porque se sentia triste, ou Antônio Gomes da Silva, sem diagnóstico, que, dos 34 anos de internação, ficou mudo durante 21 anos porque ninguém se lembrou de perguntar se ele falava.
Gravura R
Os pacientes da Colônia às vezes comiam ratos, bebiam água do esgoto ou urina, dormiam sobre capim, eram espancados e violados. Nas noites geladas da Serra da Mantiqueira, eram deixados ao relento, nus ou cobertos apenas por trapos. Pelo menos 30 bebês foram roubados de suas mães. As pacientes conseguiam proteger sua gravidez passando fezes sobre a barriga para não serem tocadas. Mas, logo depois do parto, os bebês eram tirados de seus braços e doados.
Gravura S
Alguns morriam de frio, fome e doença. Morriam também de choque. Às vezes os eletrochoques eram tantos e tão fortes, que a sobrecarga derrubava a rede do município. Nos períodos de maior lotação, 16 pessoas morriam a cada dia. Ao morrer, davam lucro. Entre 1969 e 1980, 1.853 corpos de pacientes do manicômio foram vendidos para 17 faculdades de medicina do país, sem que ninguém questionasse. Quando houve excesso de cadáveres e o mercado encolheu, os corpos foram decompostos em ácido, no pátio da Colônia, diante dos pacientes, para que as ossadas pudessem ser comercializadas. Nada se perdia, exceto a vida.
Gravura T
No início dos anos 60, depois de conhecer a Colônia, o fotógrafo Luiz Alfredo, da revista O Cruzeiro, desabafou com o chefe: “Aquilo é um assassinato em massa”. Em 1979, o psiquiatra italiano Franco Basaglia, pioneiro da luta pelo fim dos manicômios que também visitou a Colônia, declarou numa coletiva de imprensa: “Estive hoje num campo de concentração nazista. Em lugar nenhum do mundo, presenciei uma tragédia como essa”.
Gravura U
De 1950 a 1980, doentes mentais e pessoas saudáveis foram torturadas e mortas dentro do hospital psiquiátrico e, até hoje, as denúncias de maus-tratos não foram investigadas e não há punidos.
Na época em que o manicômio funcionava, os pacientes eram enviados para lá de trem e sem sequer tomarem conhecimento do motivo e das sessões de terror a que seriam submetidas ao passarem da portaria.
Gravura V
O desembarque dos pacientes era feito nos fundos do manicômio e, em seguida, todos tinham que entregar os documentos e pertences. Além disso, eles eram obrigados a vestir uniformes, tinham a cabeça raspada e tomavam banho gelado. Tratamento muito parecido com os campos de concentração nos tempos de guerra.
Gravura W
Gravura X
O Hospital Colônia era uma espécie de depósito de lixo humano, onde os internados perdiam a identidade e a dignidade. Em torno de 60 mil pacientes que viviam em condições sub-humanas no maior hospício do Brasil morreram. Os pacientes dormiam amontoados no chão, que apenas era forrado com capim. Eles também eram trancados, castigados e chegaram a testemunhar alguns corpos de colegas serem queimados em tanques de combustíveis.
Gravura Y
Entre os medicamentos usados no tratamento dos doentes mentais existia o chá da meia noite, que era uma espécie de injeção letal. Quando os pacientes morriam e a família não reivindicava o corpo, eles eram doados ou vendidos para faculdades. Ao todo, 1853 cadáveres forram entregues para 17 universidades.
Gravura Z
Entre os pacientes, também havia crianças. Os casos de tortura chegou a ser noticiado pela imprensa, depois que um diretor denunciou as sessões de horror e foi “convidado” a pedir demissão. Indignado, o funcionário chamou a imprensa. Muitas crianças nasceram no hospício e foram arrancadas das mães e levadas para creches e orfanatos.
A internação dos pacientes era feita a mando de autoridades locais, como delegados, prefeitos, vereadores e padres, além de familiares. Normalmente, os mandados para o manicômio eram pessoas que perderam os documentos, mães solteiras, mulheres que perderam a virgindade antes do casamento.
Vídeo II - HOLOCAUSTO BRASILEIRO - BOOK TRAILER DO LIVRO DE DANIELA ARBEX
Vídeo III - Os Horrores de Barbacena
Texto IV - Declarações feitas no youtube por diversos internautas:
Anderson Rafaelmt:
Moro em barbacena, sabia de um pouco da história, so que nunca imaginei ser tão macabra e desumana. Aqui na minha cidade Barbacena-MG tem um museu hoje em dia que tem o nome de "Museu da Loucura". Neste museu existem aparelhos que eram usados para torturas dos pacientes, jaulas e grades. Só de olhar da calafrio, devia sim ter uma adaptação para o cinema !
Esse horror ainda assombra a nossa cidade a maldade foi muito grande, e há uma carga negativa que paira no ar por causa desse acontecido.
rferreira:
Muitos que participaram disso , e podiam fazer algo, não fizeram, hoje estão aposentados do estado , curtindo as benesses do trabalho sujo ,lembro me até hoje das festas juninas que eram realizadas no campo de futebol da fhemig, com o sr manél, quando criança íamos para um local perto do campo de concentração colônia ,só para ficarmos lá do alto vendo as pessoas amontoadas no pátio e peladas ,triste diversão de crianças inocentes , conheço o que era aquilo de perto e de experiência pessoal .
rferreira:
Quem se atreve a dizer quem eram os compradores dos cadáveres , quais serão as faculdades de medicina?
Rogério Santos:
A foto da entrada da Colônia é muitíssimo parecida com a foto da entrada do campo de concentração de Auschwitz.
APARECIDA DOS SANTOS:
Nasci na cidade de Barbacena , cheguei a conhecer o local, mas algumas alas já havia sido desativadas. Mas nas estradas próximo à colônia, como era conhecida, encontravam-se com muitos pessoas vagando sem destino. Como Eu era pequena às vezes ficava com muito medo. Mas Eles, coitados, não faziam nada com as pessoas.
Este livro com esse relatos verídicos, olha, daria um excelente filme a estatueta de ouro.
João Paulo Almeida:
Assim age a sociedade em relação ao diferente: patologiza, segrega e estigmatiza. Pena que as pessoas não conheçam esse momento negro de nossa história... se conhecessem, talvez não presenciaríamos tantas tentativas de patologização como as que vemos atualmente em nosso país.
Maria Jose Cunha:
Meu nome é Maria Jose Cunha, estou chocada, sou filha de mineiros do norte de Minas Gerais de Januaria e não sabia disso, numa que a tv que tem tanta fofoca e palhaçadas nunca falaram nada sobre isso, tomara tenha um filme,um documentario ,o qualquer coisa. Essa Daniela Arbex é um ser iluminado que veio pra nos esclarecer essa barbaridade.
Juliano Malta:
Sou natural de Barbacena e tenho que admitir que foi bem assim, muitos de meus parentes são medicos em hospitais psiquiátricos lá. Barbacena nessa época era a cidade polo de venda de cadáveres pra faculdades e os corpos eram desses pacientes.
Quando puderem façam uma visita ao museu da loucura em Barbacena, parece mais um museu de máquinas de tortura.
Daniela Arbex parabéns.
Dan:
Foi esse tipo de mentalidade retrógrada que criou esses "campos de concentração", mas eles estão voltando, os mesmos tipos de cristãos que fizeram o holocausto simplesmente não conseguem parar de matar minorias de todos os tipos. É o que gera o preconceito, a intolerância com as diferenças.
Nicole Leal:
Impressionante e ASSUSTADOR ao mesmo tempo. Deveria virar filme para que todos ( o mundo inteiro ) pudesse ver mais um pedaço de nossa história que estava debaixo de 7 capas, bem escondido, bem enterrado, como muitas dessas almas foram enterradas. Estou até agora sem rumo... sem chão!!! Preciso comprar este livro e criar coragem para ler suas páginas, preciso conhecer esse lado obscuro da nossa história. Parabéns Daniela Arbex. Transforme isso em filme.
Texto V - O Evento na Literatura
O conto “Sorôco, sua mãe, sua filha”, retirado do livro “Primeiras Estórias” (1962), de Guimarães Rosa, fala de um trem com grades na janela que “ia servir para levar duas mulheres, para longe, para sempre”: a mãe e a filha de um homem viúvo chamado Sorôco. Ambas com problemas mentais. O “trem de doido” existiu de verdade: ele cruzava o interior do país levando os loucos para o manicômio denominado Colônia, em Barbacena MG., o maior do Brasil – e o cenário de um terrível genocídio que durou décadas. Mais de 60 mil pessoas morreram ali. Os loucos desembarcavam nos fundos do hospital, onde o guarda-freios desconectava o último vagão.
Os loucos desembarcavam nos fundos do hospital, onde o guarda-freios desconectava o último vagão.
Leia abaixo o conto de Guimarães Rosa
Texto VI - Sorôco, sua mãe, sua filha
AQUELE carro parara na linha de resguardo, desde a véspera,
tinha vindo com o expresso do Rio, e estava lá, no desvio de dentro, na
esplanada da estação. Não era um vagão comum de passageiros, de primeira, só
que mais vistoso, todo novo. A gente reparando, notava as diferenças. Assim
repartido em dois, num dos cômodos as janelas sendo de grades, feito as de
cadeia, para os presos. A gente sabia que, com pouco, ele ia rodar de volta,
atrelado ao expresso dai de baixo, fazendo parte da composição. Ia servir para
levar duas mulheres, para longe, para sempre. O trem do sertão passava às
12h45m.
As muitas pessoas já estavam de ajuntamento, em beira do
carro, para esperar. As pessoas não queriam poder ficar se entristecendo,
conversavam, cada um porfiando no falar com sensatez, como sabendo mais do que
os outros a prática do acontecer das coisas. Sempre chegava mais povo - o
movimento. Aquilo quase no fim da esplanada, do lado do curral de embarque de
bois, antes da guarita do guarda- chaves, perto dos empilhados de lenha. Sorôco
ia trazer as duas, conforme. A mãe de Sorôco era de idade, com para mais de uns
setenta. A filha, ele só tinha aquela. Sorôco era viúvo. Afora essas, não se
conhecia dele o parente nenhum.
A hora era de muito sol - o povo caçava jeito de ficarem
debaixo da sombra das árvores de cedro. O carro lembrava um canoão no seco,
navio. A gente olhava: nas reluzências do ar, parecia que ele estava torto, que
nas pontas se empinava. O borco bojudo do telhadilho dele alumiava em preto.
Parecia coisa de invento de muita distância, sem piedade nenhuma, e que a gente
não pudesse imaginar direito nem se acostumar de ver, e não sendo de ninguém.
Para onde ia, no levar as mulheres, era para um lugar chamado Barbacena, longe.
Para o pobre, os lugares são mais longe.
O Agente da estação apareceu, fardado de amarelo, com o livro
de capa preta e as bandeirinhas verde e vermelha debaixo do braço. - "Vai
ver se botaram água fresca no carro... " - ele mandou. Depois, o
guarda-freios andou mexendo nas mangueiras de engate. Alguém deu aviso:
"Eles vêm!... " Apontavam, da Rua de Baixo, onde morava Sorôco. Ele
era um homenzão, brutalhudo de corpo, com a cara grande, uma barba, fiosa,
encardida em amarelo, e uns pés, com alpercatas: as crianças tomavam medo dele;
mais, da voz, que era quase pouca, grossa, que em seguida se afinava. Vinham
vindo, com o trazer de comitiva.
Aí, paravam. A filha - a moça - tinha pegado a cantar,
levantando os braços, a cantiga não vigorava certa, nem no tom nem no se-dizer
das palavras - o nenhum. A moça punha os olhos no alto, que nem os santos e os
espantados, vinha enfeitada de disparates, num aspecto de admiração. Assim com
panos e papéis, de diversas cores, uma carapuça em cima dos espalhados cabelos,
e enfunada em tantas roupas ainda de mais misturas, tiras e faixas,
dependuradas - virundangas: matéria de maluco. A velha só estava de preto, com
um fichu preto, ela batia com a cabeça, nos docementes. Sem tanto que
diferentes, elas se assemelhavam.
Sorôco estava dando o braço a elas, uma de cada lado. Em
mentira, parecia entrada em igreja, num casório. Era uma tristeza. Parecia
enterro. Todos ficavam de parte, a chusma de gente não querendo afirmar as
vistas, por causa daqueles transmodos e despropósitos, de fazer risos, e por
conta de Sorôco - para não parecer pouco caso. Ele hoje estava calçado de
botinas, e de paletó, com chapéu grande, botara sua roupa melhor, os maltrapos.
E estava reportado e atalhado, humildoso. Todos diziam a ele seus respeitos, de
dó. Ele respondia: - "Deus vos pague essa despesa... "
O que os outros se diziam: que Sorôco tinha tido muita
paciência. Sendo que não ia sentir falta dessas transtornadas pobrezinhas, era
até um alívio. Isso não tinha cura, elas não iam voltar, nunca mais. De antes,
Sorôco agüentara de repassar tantas desgraças, de morar com as duas, pelejava.
Dai, com os anos, elas pioraram, ele não dava mais conta, teve de chamar ajuda,
que foi preciso. Tiveram que olhar em socorro dele, determinar de dar as
providências de mercê. Quem pagava tudo era o Governo, que tinha mandado o
carro. Por forma que, por força disso, agora iam remir com as duas, em
hospícios. O se seguir.
De repente, a velha se desapareceu do braço de Sorôco, foi se
sentar no degrau da escadinha do carro. - "Ela não faz nada, seo Agente...
" - a voz de Sorôco estava muito branda: - "Ela não acode, quando a
gente chama... " A moça, ai, tornou a cantar, virada para o povo, o ao ar,
a cara dela era um repouso estatelado, não queria dar-se em espetáculo, mas
representava de outroras grandezas, impossíveis. Mas a gente viu a velha olhar
para ela, com um encanto de pressentimento muito antigo - um amor extremoso. E,
principiando baixinho, mas depois puxando pela voz, ela pegou a cantar, também,
tomando o exemplo, a cantiga mesma da outra, que ninguém não entendia. Agora
elas cantavam junto, não paravam de cantar.
Aí que já estava chegando a horinha do trem, tinham de dar
fim aos aprestes, fazer as duas entrar para o carro de janelas enxequetadas de
grades. Assim, num consumiço, sem despedida nenhuma, que elas nem haviam de
poder entender. Nessa diligência, os que iam com elas, por bem-fazer, na viagem
comprida, eram o Nenêgo, despachado e animoso, e o José Abençoado, pessoa de
muita cautela, estes serviam para ter mão nelas, em toda juntura. E subiam
também no carro uns rapazinhos, carregando as trouxas e malas, e as coisas de
comer, muitas, que não iam fazer míngua, os embrulhos de pão. Por derradeiro, o
Nenêgo ainda se apareceu na plataforma, para os gestos de que tudo ia em ordem.
Elas não haviam de dar trabalhos.
Agora, mesmo, a gente só escutava era o acorçôo do canto, das
duas, aquela chirimia, que avocava: que era um constado de enormes diversidades
desta vida, que podiam doer na gente, sem jurisprudência de motivo nem lugar,
nenhum, mas pelo antes, pelo depois.
Sorôco. Tomara aquilo se acabasse. O trem chegando, a máquina
manobrando sozinha para vir pegar o carro. O trem apitou, e passou, se foi, o
de sempre.
Sorôco não esperou tudo se sumir. Nem olhou. Só ficou de
chapéu na mão, mais de barba quadrada, surdo - o que nele mais espantava. O
triste do homem, lá, decretado, embargando-se de poder falar algumas suas
palavras. Ao sofrer o assim das coisas, ele, no oco sem beiras, debaixo do
peso, sem queixa, exemploso. E lhe falaram: - "O mundo está dessa forma...
"Todos, no arregalado respeito, tinham as vistas neblinadas. De repente,
todos gostavam demais de Sorôco.
Ele se sacudiu, de um jeito arrebentado, desacontecido, e
virou, pra ir-s'embora. Estava voltando para casa, como se estivesse indo para
longe, fora de conta.
Mas, parou. Em tanto que se esquisitou, parecia que ia perder
o de si, parar de ser. Assim num excesso de espírito, fora de sentido. E foi o
que não se podia prevenir: quem ia fazer siso naquilo- Num rompido - ele
começou a cantar, alteado, forte, mas sozinho para si - e era a cantiga, mesma,
de desatino, que as duas tanto tinham cantado. Cantava continuando.
A gente se esfriou, se afundou - um instantâneo. A gente... E
foi sem combinação, nem ninguém entendia o que se fizesse: todos, de uma vez,
de dó do Sorôco, principiaram também a acompanhar aquele canto sem razão. E com
as vozes tão altas! Todos caminhando, com ele, Sorôco, e canta que cantando,
atrás dele, os mais de detrás quase que corriam, ninguém deixasse de cantar. Foi
o de não sair mais da memória. Foi um caso sem comparação.
A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de
verdade. A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga.
O RENOMADO ESCRITOR MINEIRO GUIMARÃES ROSA
Vídeo IV - Sorôco, sua mãe, sua filha
Assista abaixo a adaptação em vídeo do conto Sorôco, sua mãe, sua filha - Curta metragem inspirado na obra de Guimarães Rosa
Pintura: Sorôco, sua mãe, sua filha
Óleo sobre tela - "Sorôco, sua mãe, sua filha" de Alberto Messias Estanislau - Quadro inspirado na obra de Guimarães Rosa
Charge - Do outro lado só tem louco.
Ilustração: O Alienista - Inspirado na obra de Machado de Assis
Pensamentos de grandes nomes da humanidade de todos os tempos